Torço sempre o nariz quando alguém começa a falar de refluxo menstrual para justificar a ocorrência de endometriose – o que acontece demasiadas vezes.
Apesar de não sabermos porque é que a endometriose acontece, uma coisa é certa: cada vez mais a ciência nos demonstra que ela pode estar presente desde que nascemos.
O que é isto da menstruação retrógrada?
Para vos dar algum contexto: nos anos 20, um médico chamado John Sampson propôs que a menstruação retrógrada era o motivo por detrás da doença.
A menstruação retrógrada de facto existe: quando menstruamos, o endométrio (que é uma camada fofinha que reveste o interior do nosso útero) descama e compõe a nossa menstruação. Acontece que por vezes, alguma da menstruação vai no sentido contrário: é isto a menstruação retrógrada, ou refluxo menstrual.
A teoria de Sampson defende que as células endometriais presentes nesse sangue menstrual migram então para outras partes do corpo, onde se instalam, onde começam a crescer e a eventualmente causar dor.
É apenas uma teoria que, tendo já sido altamente refutada nos últimos 30 anos por diversos médicos e investigadores, continua a ser mencionada por profissionais de saúde e meios de comunicação como a provável causa da doença.
Já partilhei convosco a tradução deste artigo da Nancy Petersen sobre o tema, mas acho que merece maior atenção.
Porque é que importa que a endometriose possa estar presente desde que nascemos?
1. Já foram encontrados vestígios de endometriose em fetos
Já não é novidade, porque pelo menos desde 2010 que estudos científicos demonstram que a endometriose está presente em fetos – ou seja, ela já está em nós mesmo antes de nascermos.
Segundo a teoria que sustenta este fenómeno, quando estamos a ser formadxs no útero das nossas mães, por alguma razão existe uma deslocação das células endometriais que deveriam alojar-se apenas no nosso útero.
Pergunto eu: será que se aplica a toda a gente? Há médicos e especialistas no assunto que defendem que sim, que em todos os casos a endometriose está presente desde o nascimento¹. Num estudo² em que se observaram 101 fetos, a prevalência de endometriose era igual àquela que conhecemos hoje em dia: 10% das pessoas com útero.
2. Quase todas as pessoas que menstruam têm refluxo menstrual, mas apenas 10% desenvolvem endometriose
Supostamente, cerca de 90% das pessoas que menstruam apresentam refluxo menstrual, mas só 10% é que desenvolvem a doença⁵. Isto significa que se a teoria de Sampson estivesse correcta, a prevalência de endometriose seria muito superior.
3. Há homens que desenvolvem endometriose
Embora raros, há casos reportados³ ⁴ de homens cis que desenvolvem endometriose e eles não podem sofrer de refluxo menstrual uma vez que não menstruam. Logo, tem de haver outra explicação para o surgimento da doença.
4. Medicação que impede a menstruação não trata a endometriose
Impedir a menstruação permite evitar os sintomas a ela associados. No entanto, a medicação – seja a pílula ou indução de menopausa química – acarreta riscos e efeitos secundários (que muitas vezes não são clarificados axs pacientes) e não trata a doença.
Porque é que continuamos a insistir na teoria da menstruação retrógrada?
Em primeiro lugar porque, mesmo não sendo a causa da doença, muitos médicos apontam que pode ser uma agravante. Ou seja, se há pessoas com predisposição para desenvolverem endometriose, há quem defenda que a menstruação retrógrada pode ter um contributo.
Em segundo lugar, porque há muitos profissionais de saúde que mal ouviram falar da doença. De entre os poucos que a conhecem (nem que seja superficialmente), muitos deles não estão actualizados quanto às evidências científicas mais recentes. A teoria de Sampson tem vindo a ser refutada desde os últimos 30 anos – imaginem um ginecologista de 60 anos, que fez a faculdade há 40.
Finalmente, esta teoria sustenta a hipótese de que, após uma cirurgia de remoção dos focos, a doença irá retornar devido ao inevitável processo de refluxo menstrual que trará novas células endometriais para o resto do nosso corpo.
Não, não é por isso que a doença volta. A doença volta porque nem sequer chegou a ser bem removida. Quando a doença é bem removida, por um cirurgião especializado e experiente, as taxas de reincidência apresentam-se muito mais baixas.
Se a doença for mal removida, qualquer vestígio que permaneça irá voltar a crescer. É claro que isto também acontece com médicos experientes, mas em muito menor grau do que aquele que é praticado.
Em conclusão
Continua a não ser conhecido o verdadeiro motivo pelo qual temos de lidar com esta doença chata.
A teoria da menstruação retrógrada é cada vez menos válida, apesar de continuar a ser erroneamente promovida como a causa mais provável para a endometriose.
Apesar dos recentes progressos na investigação, continua a ser dada muito pouca atenção a esta doença.
Ainda que seja mais comum do que se imagina, continua sem ser diagnosticada em grande parte dos casos (adoraria conhecer o número em Portugal) devido à normalização dos seus sintomas. Esta doença afecta entre 1 em cada 10 pessoas com útero.
E tu? Quantas pessoas com útero conheces? E quantas pessoas conheces que se queixam de cólicas menstruais horrendas?
Pois é.
É necessário espalhar a mensagem.
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Referência bibliográfica
¹Endometriosis is present at birth
²Embryologic origin of endometriosis: analysis of 101 human female fetuses.